ENTREVISTA: Câmbio em evidência

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A taxa de câmbio está no centro do debate no mundo. Enquanto os países avançados lidam com uma grave crise econômica de escala global, há o fenômeno da "guerra cambial", que permeia todos os fóruns multilaterais de negociação. Ao mesmo tempo, a União Europeia tenta debelar a crise de dívida soberana que começou na Grécia e se alastrou para Portugal, Espanha e Itália, que poderia ser equacionada com desvalorizações cambiais individuais, não estivessem todos "atados" sob uma mesma moeda, o euro. Os Estados Unidos acusam a China de manter sua moeda, o yuan, excessivamente desvalorizada, barateando artificialmente as exportações chinesas. No Brasil, o recente movimento de desvalorização do real - que saiu de R$ 1,55 em agosto para patamares próximos a R$ 1,85 entre setembro e outubro - foi comemorado pelo governo e pelos exportadores.

 

Desenvolvimento nacional - O patamar de uma moeda frente a outras mais fortes, como o dólar, é central para a estratégia de desenvolvimento nacional. Essa é a premissa básica dos economistas Márcio Holland e Yoshiaki Nakano, que lançam, neste mês, o livro "Taxa de Câmbio no Brasil: Estudos de uma Perspectiva do Desenvolvimento Econômico" (Campus/Elsevier, FGV Projetos).

 

Modelo - O câmbio pode ser usado pelo Estado para promover um modelo de desenvolvimento econômico. Uma moeda valorizada em relação ao dólar aumenta o poder de compra dos salários e torna mais baratos os importados, estimulando, portanto, o consumo doméstico. Já uma taxa de câmbio desvalorizada amplia a remuneração dos bens e serviços vendidos ao exterior, ampliando a entrada de divisas no país e alargando o balanço de pagamentos.

 

Brasil e China - O primeiro caso é similar ao adotado pelo Brasil, ainda que não de maneira formal, enquanto o segundo é semelhante àquele adotado pela China. Os dois estão entre as principais vedetes mundiais há dez anos, quando o acrônimo Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) foi criado pelo economista-chefe do Goldman Sachs, Jim O'Neill, para aglutinar os países emergentes com crescimento mais destacado.

 

Desindustrialização - Em entrevista ao Valor, um dos organizadores do livro, Márcio Holland, não pestaneja: "Nenhum dos dois países está preparado para conviver com a situação inversa à que estão vivendo hoje." Isto é, não basta aos economistas brasileiros defender a adoção de um regime cambial semelhante ao chinês para escapar da "desindustrialização" resultante do crescente ingresso de produtos importados.

 

Carreira - Doutor em economia pela Unicamp e pós-doutor pela Universidade de Berkeley (EUA), Holland é secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda desde janeiro, quando aceitou o convite do ministro Guido Mantega para deixar a coordenação da pós-graduação em economia da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP).

 

Fazenda - "Já ouvi de analistas que o Brasil será a grande fazenda do mundo. Este é um modelo de país que a sociedade pode escolher e o governo pode tocar", afirma Holland. "Mas eu acredito fielmente na importância de manufaturar. A presença da indústria é ainda fundamental num país como o Brasil, com nosso nível médio de educação e qualificação e por seus efeitos em cadeia."

 

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

 

Valor: Por que a taxa de câmbio está em evidência no mundo?

 

Márcio Holland: Falamos de uma variável muito complexa, que tem um lado de ativo financeiro, com cotação formada nos mercados financeiros e com forte viés especulativo, e outro que é formado pelos governos, por meio de suas políticas cambiais. Mas, principalmente, o câmbio está em evidência porque reflete um modelo de país. O câmbio é uma variável central para um país.

 

Valor: O câmbio define, portanto, para onde vai a economia de cada país?

 

Holland: Minha visão é que o Brasil nunca fez política cambial para o desenvolvimento econômico de forma consistente. Teve períodos pontuais, como no governo [Eurico Gaspar] Dutra, com o regime de câmbio dual, com multitaxas de câmbio setoriais. Mesmo o regime adotado entre 1969 e 1983, de minidesvalorizações diárias, foi muito mais voltado para a correção do câmbio nominal aos preços. Não havia um projeto de desenvolvimento econômico, apenas de correção. Em seguida, passamos a trabalhar com o regime de câmbio fixo, da âncora cambial sendo usada para garantir a estabilização monetária.

 

Valor: A China, com o câmbio fixo em patamares muito desvalorizados, seria um exemplo de política cambial para o desenvolvimento?

 

Holland: A China é um "case". Ela experimenta uma política cambial de desvalorização continuada por um longo período de tempo. Isso é uma política cambial voltada para o crescimento, mas é muito difícil de implementar.

 

Valor: O governo chinês anunciou que pretende alterar seu modelo de crescimento, aumentando o peso do consumo doméstico. Isso é possível no Brasil?

 

Holland: Nenhum dos dois países está preparado para conviver com a situação inversa da que eles estão vivendo. Ou seja, dificilmente veremos uma transição suave da China para um modelo mais parecido com o nosso ou uma transformação do regime brasileiro para algo como o praticado na China.

 

Valor: O Brasil está se desindustrializando?

 

Holland: Esse não é um debate brasileiro apenas. O livro tem essa liberdade de os autores escreverem independentemente da visão dos organizadores, uma vez que há divergência entre os economistas. Um dos capítulos aponta para uma relação direta entre o real valorizado e a desindustrialização. Estamos vivendo uma desindustrialização no Brasil, sem dúvida, porque outros setores, especialmente o de serviços, estão ampliando sua importância na geração de riqueza do país, enquanto a indústria diminui. Mas o câmbio não necessariamente explica esse processo.

 

Valor: Como assim?

 

Holland: Há um forte movimento de urbanização no Brasil, e também uma mudança demográfica, com o aumento da idade média. Nesse cenário, é inevitável que haja maior demanda da sociedade por serviços, uma demanda que é natural em qualquer país que cresce. Ao mesmo tempo, a partir do fim dos anos 80 e início dos 90, há um choque mundial de tecnologia e serviços de comunicação. O mundo ficou muito mais serviços e menos indústria, muito mais de internet que de manufatura. Alguma desindustrialização, portanto, era inevitável.

 

Valor: Além do fator China...

 

Holland: Justamente. Ninguém pode negar o maior exportador mundial. A China praticamente achata todos os preços internacionais de manufatura. Grande parte da indústria mundial começa a se beneficiar da importação de insumos, e os consumidores também. O câmbio explicaria a exportação de bens de alta tecnologia para os Estados Unidos e Europa. Se os Estados Unidos continuassem com o crescimento vigoroso dos anos 1990, por exemplo, não teríamos assistido a uma redução nas exportações de manufaturados na proporção que tivemos, mesmo com câmbio valorizado. O problema não é só o câmbio.

 

Valor: Mas essa desindustrialização, que o senhor reconhece, o preocupa?

 

Holland: Já ouvi de analistas que o Brasil será a grande fazenda do mundo. Esse é um modelo de país que a sociedade pode escolher e o governo pode tocar. Mas eu acredito fielmente na importância de manufaturar. A presença da indústria é ainda fundamental num país como o Brasil, com nosso nível médio de educação e qualificação, e por seus efeitos em cadeia. A indústria emprega muito, e isso é importantíssimo para nós. Se o modelo teórico de um economista não supõe a indústria como importante, a pergunta é: o que fazer com esse contingente de trabalhadores? É mais gasto fiscal para o Estado, que terá de incorporá-los em políticas públicas.

 

Valor: O livro não defende nenhuma política cambial explícita, mas apresenta uma série de caminhos, depois de verificados os problemas. Qual o senhor considera o modelo definitivo?

 

Holland: Não há receita de bolo quando falamos de câmbio e o livro deixa isso claro. Há algumas coisas que podemos pensar, no entanto, de forma global. Poucos países adotam um câmbio completamente flutuante, mas sim um com algum grau de administração. Raramente um país persiste com um regime de câmbio por longo tempo. Então o que realmente sabemos, independentemente da opinião de cada um, é que a mediana dos países adota um regime de câmbio administrado. Isso diz alguma coisa.

 

Valor: O quê?

 

Holland: Uma das coisas que defendo é que a taxa de câmbio não é o único e exclusivo instrumento de política para estímulo das exportações. Isso causa controvérsia. Do que adianta dar o câmbio [desvalorizar a moeda] à indústria se temos complexidade tributária, uma logística cara e problemas de oferta de mão de obra? Há, portanto, outras coisas que podem ser feitas cujo efeito seria poderosíssimo. Não sei se o câmbio é uma variável para exportação nesse caso, mas é importante para importação, que ajuda e atrapalha. Ajuda porque vários equipamentos importados nós não temos, ao mesmo tempo que pode atrapalhar porque não gera escala suficiente no mercado interno. Há um ponto de equilíbrio no câmbio que é difícil de encontrar.

 

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