SUCESSO E PRECONCEITO(*)

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O aço não é único exemplo de indústria que se tornou obsoleta e ineficiente nos EUA, depois de passar décadas deitada à sombra de altas tarifas e cotas de importação. Neste caso, o principal instrumento de proteção têm sido os recorrentes processos de antidumping, que servem basicamente para mostrar que a culpa é sempre dos outros, que se tornaram eficientes demais. Na soja ocorre algo parecido. Os EUA já ficaram para trás do Brasil, a distância, nos custos de produção, e agora por ligeira margem também na produtividade física. Desde 1998, o governo americano vem aumentando os subsídios internos, que atingem agora a casa dos US$ 3,5 bilhões anuais, para compensar as quedas de preços em parte causadas por estes mesmos subsídios. Mas a soja não foi a maior surpresa no Agricultural Outlook de 2002 - o principal evento de conjuntura agropecuária promovido anualmente pelo Departamento de Agricultura dos EUA, o USDA. A crescente competitividade desta commodity na América do Sul já vinha sendo comentada havia vários anos.

O que causou surpresa esse ano foi ver o nome do Brasil sendo citado, de forma recorrente, nos painéis do algodão, do milho, do frango e dos suínos, sem contar o painel do açúcar, onde o nome Brasil já é quase um palavrão. O curioso dessa história toda é notar que, em quase todos esses produtos, os EUA sempre foram o nosso benchmark, onde formamos os nossos Ph.D., de onde trouxemos as melhores tecnologias para quase todos estes produtos e de onde vem a maior parte das multinacionais que atuam no país. Em eventos como este do USDA, costuma-se repetir, de forma cansativamente chauvinista, que os EUA são "o maior e mais eficiente produtor agropecuário do mundo, líder do movimento mundial pela liberalização dos mercados do protecionismo estrangeiro que impede a expansão da sua agricultura".

Essa conversa para boi dormir só é verdadeira na sua primeira parte. Aí, justiça seja feita, os EUA não são apenas o maior produtor mundial, mas também os "pais" do modelo de produção e consumo capital-intensivo que se espalhou pelo mundo no século 20. Tal modelo é resultado da extraordinária história da expansão da agricultura no oeste dos EUA, apoiada por um eficiente sistema de faculdades agrícolas estabelecidas em 1862, os chamados Land Grant colleges, da criação de estações de experimentação científica desde 1887, da organização de um sistema de agentes para a difusão das novas técnicas a partir de 1914, de um enorme esforço na área da infra-estrutura: redes de estradas de ferro e hidrovias, construção de canais, obras de drenagem, etc. Estes pesados investimentos em tecnologia e infra-estrutura permitiram a liberação de mão-de-obra para a rápida industrialização e urbanização da economia americana. A agricultura deixou de ser trabalho-intensiva, e passou a ser capital-intensiva. O Plano Marshall, as revoluções verdes e a expansão das grandes corporações multinacionais cuidaram de internacionalizar este modelo.

Ocorre que os EUA paulatinamente vão deixando de ser os "melhores" do mundo. Hoje o País gasta US$ 23 bilhões anuais com subsídios diretos aos agricultores. Se considerarmos também as transferências indiretas dos consumidores, basicamente via políticas de preços garantidos, os subsídios americanos remontam a quase US$ 50 bilhões anuais, na estimativa da OCDE.

Há estudos que mostram que pelo menos um terço destes subsídios se transfere para o preço da terra, gerando um círculo vicioso no qual o subsídio aumenta o preço da terra, e portanto o custo de produção, o que reduz as margens de lucro e faz aumentar a pressão dos lobbies por mais subsídios. Uma história muito parecida com a do aço, principalmente na perda estrutural de competitividade e na ação resultante dos lobbies em Washington.

Enquanto isso, na segunda metade do século, a agricultura brasileira assimila com sucesso grande parte da tecnologia gerada pelos americanos. Nos anos 90, a abertura comercial, a concorrência do Mercosul, a eliminação dos subsídios e proteções e a estabilização da economia produziram ganhos extraordinários de produtividade na agricultura brasileira, tornando-a a mais eficiente do mundo em diversos produtos. Açúcar, soja, laranja e frango são apenas quatro bons exemplos nos quais o Brasil apresenta hoje o menor custo de produção do mundo. Se acreditarmos que o País vai completar o seu ajuste nos próximos anos, com a sonhada reforma tributária e uma taxa de juros mais amigável, ficaria faltando apenas mais dois degraus para completar essa história de sucesso: infra-estrutura e acesso aos mercados.

No caso da infra-estrutura, vamos caminhando, aos poucos. Uma das melhores regiões do mundo para se produzir commodities é o Centro-Oeste brasileiro, e sua viabilidade depende de que se complete um ciclo de investimentos semelhante ao que os americanos fizeram na primeira metade do século. O último degrau, a questão do acesso aos mercados, depende de o Brasil encarar com garra as três negociações que vão ocorrer nos próximos anos: OMC, Alca e UE-Mercosul. Na OMC, o Brasil deveria assumir de vez uma posição de liderança em favor da ampliação do Grupo de Cairns. Desde a sua criação em 1986, este grupo de países insatisfeitos com o protecionismo

agrícola é notoriamente comandado pela Austrália, país que investe grande quantidade de recursos humanos e capital em política comercial agrícola, numa estratégia que certamente melhorou a sua posição nos mercados de commodities. Nos acordos regionais, o Brasil precisa igualmente ampliar suas parcerias, com países andinos, centro-americanos e caribenhos, por exemplo, no caso da Alca.

O que o Brasil definitivamente não pode é virar as costas para o seu potencial agrícola. Não raro, surgem na imprensa cenas de preconceito explícito contra o setor. Apenas para citar uma delas, em 27/12 o embaixador Samuel P. Guimarães, que tem destoado completamente dos seus pares e por isso mesmo tornou-se um expoente da esquerda anti-globalização em Porto Alegre, afirmava neste jornal: "O mito de um Brasil país grande produtor e exportador agrícola é um extraordinário retrocesso intelectual e político e ignora o extraordinário esforço de desenvolvimento industrial brasileiro desde 1929." E ainda: "Os mercados industriais são os mercados do futuro e aqueles dos quais deve o Brasil almejar participar cada vez mais."

Desconsiderando o fato de que em 2001 este "retrocesso intelectual e político" gerou um superávit comercial recorde de quase US$ 20 bilhões, sem o qual estaríamos numa situação pior que a da Argentina, vale tecer pelo menos dois comentários a respeito.

Primeiro, que não há nada mais ultrapassado do que a idéia da existência de um setor "agrícola" atrasado, que se contraporia aos modernos setores "industriais" e de "serviços". Basicamente o que o Brasil exporta hoje são produtos agroprocessados derivados de uma competitiva indústria de alimentos e bebidas, como suco de laranja, açúcar, álcool, carnes processadas, óleos vegetais, rações e outros. Não por acaso, uma pauta de produtos com características muito semelhante à de países desenvolvidos do porte da Austrália, Nova Zelândia, EUA e Canadá, entre outros. Segundo, a longo prazo o que realmente interessa não é o que um país produz, mas como ele produz, a partir de ganhos estruturais de produtividade e competitividade vis-à-vis os seus melhores concorrentes> mundiais. Sob essa ótica, o seminário do USDA deveria servir como um recado para que o gigante pela própria natureza não fique deitado eternamente em berço esplêndido e vá conquistar, com braço forte, o futuro que espelha a sua grandeza.

(*) Marcos S. Jank, professor da USP e, no momento, pesquisador visitante da Divisão de Integração e Comércio do BID em Washington. E-mail: Este endereço para e-mail está protegido contra spambots. Você precisa habilitar o JavaScript para visualizá-lo.

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