Marcos Sawaya
Jank (*)
Finalmente, uma boa notícia para o comércio mundial, com
o fechamento do programa de trabalho da Rodada de Doha da Organização
Mundial de Comércio (OMC) na madrugada de 1.º de agosto, em
Genebra. Depois de cansativas reuniões que avançaram noite
adentro, ministros e altos oficiais dos 147 países membros chegaram
a uma estrutura básica para o futuro acordo da Agenda do Desenvolvimento
de Doha, agora previsto para ser concluído na 6.ª Conferência
Ministerial da OMC, em Hong Kong, em dezembro de 2005.
O primeiro ponto que merece destaque é o avanço do multilateralismo
comercial, que corria risco de forte retrocesso ou mesmo perecimento se
o resultado de Genebra repetisse o fracasso da reunião ministerial
de Cancún, em setembro de 2003. O acordo fecha o primeiro ciclo
dos trabalhos e estabelece as bases para a introdução de
metas numéricas que darão o formato final do acordo. O segundo
ponto de destaque é a presença do Brasil como player central
e ativo nas negociações.
Genebra consolida uma nova dinâmica nas negociações,
em que o tradicional "consenso" do Quad - EUA, União
Européia (UE), Canadá e Japão - é substituído
por um novo formato de harmonizações sucessivas de posições
de países-chaves desenvolvidos e em desenvolvimento, que lideram
as principais posições e coalizões. Os resultados
indicam que, ao menos até o momento, a estratégia do G-20
posicionou o Brasil como um dos líderes incontestáveis do
processo e trouxe resultados satisfatórios. Internamente, aprendemos
a importância de juntar esforços dos diferentes ministérios
envolvidos, setor privado e pesquisa aplicada para lutar pela redução
das assimetrias nas regras e disciplinas para a agricultura.
No entanto, se o primeiro tempo terminou com bons resultados, ainda não
dá para cantar vitória. Os temas mais sensíveis para
o Brasil só serão definidos no segundo tempo, a partir dos
números que serão introduzidos no documento. Certamente,
conseguimos evitar um mau acordo, como era o caso em Cancún, mas
ainda estamos longe de um bom acordo. Para melhor entender o desafio que
se coloca à frente é preciso analisar os principais resultados
do documento.
Competição das exportações agrícolas:
de longe a área onde mais se avançou, o texto afirma categoricamente
"que os membros estabelecerão modalidades detalhadas que garantam
a eliminação em paralelo de todas as formas de subsídios
à exportação e medidas com efeito equivalente em
uma data a ser negociada". Decretam-se, assim, em data a ser acordada,
o fim dos subsídios à exportação e avanços
efetivos no disciplinamento dos créditos à exportação,
das práticas distorcivas usadas por empresas estatais de comércio
e do abuso dos programas de ajuda alimentar.
Apoio interno aos agricultores: aqui há boas e más notícias.
A má notícia é a reforma da chamada "caixa azul",
um mecanismo que permite acomodar alguns instrumentos de política
agrícola criados pela Lei Agrícola 2002 dos EUA (principalmente
os pagamentos contracíclicos) e pela tímida reforma da Política
Agrícola Comum da UE, ocorrida em 2003 e 2004. A primeira boa notícia
é que o texto determina prioridades ambiciosas e aceleradas para
o problema dos subsídios ao algodão, que de fato deve avançar
mais que outros produtos por conta da pressão dos países
africanos e das ONGs e, no futuro próximo, pelos resultados finais
do contencioso comandado pelo Brasil contra os EUA. Além disso,
os painéis do algodão e do açúcar não
serão afetados pelas decisões da semana passada e correrão
de forma independente. Outra boa notícia é que conseguimos
emplacar um corte global no teto de subsídios distorcivos que incidirá
sobre a soma da caixa amarela, caixa azul e de minimis (ver tabela abaixo).
Assim, já no primeiro ano haverá uma redução
de 20% no teto de subsídios distorcivos, sendo que o nível
do corte global deve transformar-se num dos temas mais quentes da próxima
etapa das negociações.
Trata-se do "fenômeno do bode" na sua perfeição:
a nova caixa azul introduz um belo bode cheiroso no ambiente e o compromisso
inicial empurra a traseira do animal para fora da sala. Como o corte global
só será definido na próxima etapa, pode-se fazer
a analogia que o bode empacou na porta e só sairá após
intensas negociações. Mas quem conhece a fundo o tema sabe
que os indisciplinados bodes agrícolas costumam pastar na sala
verde da OMC desde 1947, e que pela primeira vez surgem uns poucos países
que querem moral e legitimamente enxotá-los para fora.
Acesso a mercados agrícolas: esse é o tema que permaneceu
mais vago e, portanto, demandará enormes esforços suplementares
de negociação. A única boa notícia é
a proposta de que as tarifas mais elevadas sofrerão cortes mais
profundos. A má notícia é a flexibilidade que será
criada para certos produtos sensíveis, cujo acesso se dará
por meio de cortes tarifários menores e cotas de importação.
A definição exata dos produtos sensíveis fica para
a próxima etapa, assim como o desmonte de um punhado de armadilhas
e indefinições de última hora.
Acesso a mercados de bens industriais: nessa área o texto original
de Cancún fixava metas ambiciosas de consolidação
de tarifas, fórmula não-linear de desgravação,
acordos setoriais de redução ou eliminação
de tarifas, tratamento de preferências e outras áreas nas
quais o Brasil é majoritariamente defensivo. O texto final, no
entanto, mantém sob negociação a maioria dos pontos
sensíveis para o Brasil.
Em
suma, o programa de trabalho de Doha representa um avanço nas negociações
e é certamente muito mais balanceado que o texto discutido em Cancún.
O Brasil ocupa, hoje, posição de liderança nas negociações,
tem enormes responsabilidades e um papel crucial de organização
interna e coordenação de países a cumprir na próxima
etapa das negociações. Há muitas armadilhas e ambigüidades
no documento e não é hora de cantar vitória, e sim
de concentrar esforços para a segunda etapa, principalmente em
apoio interno e acesso a mercados. O grande desafio é obter o "enforcement"
de reformas que vão além do status quo das políticas
agrícolas aplicadas pelos países, cortando na carne, e não
na água.

(*) Marcos Sawaya Jank, professor livre-docente da Faculdade de Economia
e Administração da USP, é presidente do Instituto
de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais.
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