Ponto de Vista: A Lei do Bioterrorismo e as exportações brasileiras
A compreensão sobre a origem e o espírito da "Lei de Segurança
da Saúde Pública e Prevenção e Resposta contra o
Bioterrorismo" ou "Bioterrorism Act. 2003" requer uma repassada
no contexto em que ocorreram os atos terroristas praticados contra os EUA, em
especial o trágico episódio de 11 de setembro.
As circunstâncias criaram uma situação que submeteu os organismos
responsáveis pela segurança de cidadãos e de bens sujeitos
a críticas pela incapacidade de se anteciparem aos fatos e de contra-atacarem.
A reação veio por diversas formas, inclusive com a aprovação
intempestiva da referida lei que, em outra conjuntura, certamente permitiria
mais tempo de discussão e seria menos rigorosa.
Com efeito, a citada lei foi promulgada e entrará em vigor em 2003, com
o seguinte cronograma no que concerne ao Título III, que trata especificamente
de alimentos e bebidas:
- Em 12 de outubro de 2003 a Agência de Administração de
Alimentação e Drogas (FDA) começará a receber os
pedidos de "registros" de estabelecimentos exportadores, mediante
o preenchimento de sete páginas de formulários, nos quais são
descritas as características do estabelecimento;
- A partir de 13 de dezembro de 2003 a FDA começará a receber
e repassar à administração a "Comunicação
Prévia", até o meio-dia anterior à data da chegada
do navio ao porto, referente a cada partida de produtos a serem exportados,
efetuada através de cinco páginas de formulários preenchidos,
onde se descreve a natureza do produto e o transportador;
- A partir de 13 de dezembro de 2003 todo estabelecimento exportador deverá
contar com um "agente" nos EUA, contratado e formalmente indicado
ao FDA, para representá-lo e responder pela transação comercial.
Essas três mencionadas providências serão condições
"sine qua non" para se exportar aos EUA, caso contrário a mercadoria
não desembarcará no porto, podendo prejudicar as demais não
agrícolas dentro do mesmo navio, ficando retida no porto, com ônus
para o vendedor. Além disso, se informações falsas sobre
um produto ou estabelecimento forem constatadas, dependendo da gravidade, podem
gerar um processo judicial por parte das autoridades estadunidenses.
A Lei confere ainda poder adicional à FDA para "Retenção
Administrativa". Ou seja, a referida Agência passa a ter o poder
de reter algum produto embarcado desde que seja sua área de competência,
caso haja suspeita sobre o mesmo.
EXCEÇÕES:
A lei exclui das novas exigências os produtos cárneos (bovinos,
suínos, avícolas etc.), leite, ovos e derivados, porque o controle,
já realizado pelo Departamento de Agricultura (USDA), foi considerado
suficiente para garantir a desejada segurança sobre a origem e as características
do produto e o estabelecimento exportador. A matéria-prima a ser processada
dentro dos EUA e posteriormente colocada no mercado por estabelecimentos daquele
país não precisará cumprir as formalidades aqui mencionadas.
Em síntese, a lei é irreversível e clara quanto às
novas exigências: há que se cumprir seus dispositivos para se exportar
alimentos e bebidas processadas para os EUA, oriundas de qualquer parte do mundo.
IMPLICAÇÕES:
Trata-se de uma "barreira técnica" permitida sobre as regras
da OMC ou uma "barreira comercial ilegal"? Nem uma nem outra. Na verdade
constitui-se numa dificuldade adicional, criada sem objetivos comerciais, mas
de segurança, ainda que possa influir no comércio.
A lei não fere o Acordo Agrícola nem o Acordo Sanitário
e Fitossanitário. As novas exigências serão aplicadas tanto
sobre as empresas estrangeiras quanto sobre as norte-americanas; e não
cria tarifa ou taxa; o registro e a notificação prévia
são gratuitos; e os pré-requisitos técnicos são
aceitáveis do ponto de vista processual. Se o governo dos EUA não
utilizar os dispositivos dessa lei de forma mais rigorosa sobre os estabelecimentos
estrangeiros do que sobre os nacionais não será possível
recorrer aos acordos firmados na OMC e NAFTA para se livrar das exigências.
Entretanto, haverá um efeito nocivo sobre as exportações
de alimentos e bebidas do Brasil para os Estados Unidos, as quais oscilam anualmente
em torno de US$ 1 bilhão (contra apenas US$ 80 milhões dos EUA
para o Brasil).
Trata-se do custo, teoricamente maior, que os estrangeiros terão para
contratar um agente dentro dos EUA. Evidentemente, não ficará
barato pagar esse representante legal, que deverá estar disponível
365 dias ao ano e ficará sujeito a ser parte integrante em processos
administrativos e judiciais nos EUA.
Bom para advogados e outros profissionais que terão aproximadamente 225
mil novos contratos de trabalho (segundo estimativas do FDA), a serem criados
e mantidos pelos exportadores para os EUA e mais 200 mil estabelecimentos do
próprio País.
Esse custo adicional para vender àquele País poderá ser
irrelevante para as grandes empresas (que inclusive já contam com representantes
comerciais contratados), mas as pequenas e médias empresas e cooperativas
terão um novo obstáculo considerável.
As exportações de produtos alimentares tradicionais para os EUA
não crescem devido aos picos tarifários e baixas cotas preferenciais
concedidas ao Brasil. A nova lei nada tem a ver com essa questão.
Ampliar a pauta para produtos novos não tem sido tarefa fácil.
Aliás, por essas razões o valor das exportações
do agronegócio brasileiro para os EUA não conseguiu crescer nos
últimos anos.
Enquanto isso, expandiu-se rapidamente para a Rússia, China (que no ritmo
atual vai ultrapassar brevemente os EUA como parceiro do Brasil), Argentina
etc., países que não praticam tarifas elevadas contra os principais
itens oferecidos pelos brasileiros.
Ou seja, as novas exigências influem quase nada sobre a pauta tradicional,
mas deverão dificultar ainda mais as potenciais vendas dos médios
e pequenos estabelecimentos, segmentos que poderiam inovar a pauta de exportações
com produtos não tradicionais com tarifas baixas e ocupar uma fatia maior
num pote com PIB de US$ 10,4 trilhões de renda.
As grandes empresas exportadoras de todo o mundo estão se preparando
para cumprir a lei, buscando modo mais prático e menores custos. Nesse
sentido, há um esforço para firmar acordos no âmbito da
"Iniciativa para Segurança de Contêineres" negociado
na Organização Mundial de Aduanas.
As administrações dos grandes portos (Roterdã, Xangai,
Le Havre, Santos etc.) estão trabalhando no sentido de firmar acordos
com o governo dos EUA. Assim, poderão atender ou facilitar o cumprimento
dos pré-requisitos legais, efetuando procedimentos no embarque no porto
de origem, tais como "escanear o contêiner", fiscalização
com presença de oficial de aduana do governo norte-americano etc.
As cooperativas e associações precisam buscar parcerias com entidades
similares dos EUA, além de polarizar as operações na Cooperativa
Central, nas Federações, ONGs de apoio ao comércio solidário
etc. Os pequenos e médios estabelecimentos certamente serão os
mais prejudicados com as novas exigências.
Enfim, a Lei do Bioterrorismo está aprovada e será colocada em vigor. Quem já exporta ou pretende vender aos EUA vai cumpri-la. O IICA elaborou e disponibilizou uma cartilha explicativa em seu site iica.org.br, com o objetivo de alertar e contribuir para um melhor conhecimento do tema e a adoção de providências oportunas que garantam a competitividade dos brasileiros, em contraposição a de seus concorrentes
(*) Representante no Brasil do Instituto
Interamericano de Cooperação para a
Agricultura (IICA) e ex-secretário de Política Agrícola
do Ministério da Agricultura.