A COMPLEXIDADE DAS NEGOCIAÇÕES INTERNACIONAIS
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Marcos Sawaya Jank (*)
Causa certo temor o despreparo da sociedade brasileira para lidar com as negociações simultâneas que o Brasil estará enfrentando nos próximos três anos: OMC, Alca e o Acordo Mercosul-União Européia. Nos EUA, esses são temas relativamente ausentes da opinião pública e da grande imprensa. Mas o país conta com uma secular "máquina negociadora" que agrega os interesses das grandes corporações multinacionais, vários órgãos da administração e o Legislativo, fora uma intensa pressão de ONGs e lobbies organizados. Além disso, há o suporte técnico permanente de think tanks e centenas de Ph.Ds. nas universidades e em órgãos de pesquisa, que geram um impressionante volume de estudos e análises sobre os efeitos dessas negociações sobre comércio, investimentos, empregos, etc.No Brasil, de uns anos para cá os assuntos de política comercial, definitivamente ganharam a primeira página dos jornais e devem agora entrar para valer na campanha eleitoral.
O tema da Alca, por exemplo, vem despertando opiniões calorosas, quase sempre do tipo "oito ou oitenta", ou seja, a Alca seria "excelente" na visão de uns ou "péssima", na visão de outros. O primoroso artigo Alca: entre Wall Street e a CNBB, publicado por Marcelo de Paiva Abreu (Estado, 1.º/4, B2), mostra a pobreza da repetição de chavões País afora. É importante a imprensa brasileira levar esse debate para as ruas. Essas negociações poderão definir boa parte do que o País vai ser daqui a 30anos, e a imprensa precisa cumprir o seu papel. O que realmente preocupa é que a sociedade organizada e, particularmente, os nossos negociadores ainda carecem de um suporte mais efetivo por parte das entidades privadas e do mundo acadêmico.
Tome-se o exemplo da negociação de "acesso a mercados", o principal tem a discutido em fóruns regionais de negociação do tipo da Alca e do Acordo Mercosul-União Européia. Recorde-se que o objetivo central da Alca é a formação de uma zona de livre comércio entre 34 países americanos, que se faz basicamente por meio da eliminação de todas as tarifas alfandegárias no comércio intra bloco. Todas? Não necessariamente. Os países podem colocar uma pequena quantidade de produtos - em geral até 15% do universo tarifário - em "listas de exceção" à zona de livre comércio, por se tratar de setores sensíveis às suas respectivas economias. É aí que entra o "problema técnico" de conhecer "ex-ante" a sensibilidade das tarifas de cada país com que se está negociando. O assunto é extremamente complexo. O universo de tarifas de um país geralmente compreende cerca de 10 mil posições tarifárias definidas pela nomenclatura do sistema harmonizado (SH), desagregadas a oito ou mais dígitos. Ocorre que o sistema só permite comparações entre países num grau menor de desagregação, a seis dígitos.
Por exemplo, a posição 240110 sempre será"fumo em folhas" para todos os países que adotam o SH. Só que a posição 24011065 é um subitem desse produto, definido como "Tobacco, not stemmedor stripped, not or not over 35% wrapper tobacco, flue-cured burley" pelos EUA e sem paralelo em outras listas, já que cada país define o que quer acima de seis dígitos. E é no oitavo dígito que residem os verdadeiros problemas. Nos EUA a posição 24011065 tem tarifa de 350%, mas o item de seis dígitos, que pode ser comparado internacionalmente, 240110 (fumo em folhas), tem tarifa equivalente de 42,5%. Portanto, as posições que são comparáveis internacionalmente normalmente já "deceparam" todos os "picos tarifários" existentes, que são essas tarifas pontuais altíssimas que aparecem no oitavo dígito. Este sugestivo exemplo do "fumo" ilustra com perfeição o que o Brasil vai encontrar pela frente nas mesas de negociação, se não se preparar adequadamente. Não bastassem os picos tarifários, há ainda o problema das escaladas tarifárias, que é a presença de tarifas que crescem à medida que aumenta o valor adicionado do produto importado.
Há igualmente o problema das quotas tarifárias, que são certas posições tarifárias "sensíveis" que contam com duas tarifas, uma bastante baixa para importações dentro de um pequeno limite prefixado (a chamada quota) e outra, absolutamente indecente, para tudo o que superar tal limite. O exemplo acima, do fumo em folhas, é um desses casos, mas nem todos os picos são quotas tarifárias. Há ainda o problema dos acordos preferenciais, já que a Alca será formada não apenas por 34 países isolados, mas também pelo cruzamento das regras e preferências de cinco acordos regionais preexistentes nas Américas: Nafta,Mercosul, Comunidade Andina, Mercado Comum Centro-Americano e Comunidade do Caribe. Essa mistura de blocos forma o que o economista Jagdish Bhagwati costuma chamar de "prato de espaguete", expressão que traduz com perfeição o que pode ocorrer com as tarifas e as regras de origem quando há sobreposição de acordos preferenciais de comércio.
E essas são só as chamadas barreiras tarifárias. Depois ainda há as barreiras não-tarifárias, que se dividem basicamente em restrições quantitativas (quotas, proibições, restrições voluntárias de exportações),barreiras sanitárias e barreiras técnicas (relacionadas com regras de licenciamento, embalagens, volumes, ingredientes, rotulagem, etc.). E,para fechar, ainda há os mecanismos de defesa comercial anti-dumping, direitos compensatórios e salvaguardas -, que são regras de comércio que podem afetar o acesso aos mercados. São cerca de 10 mil posições tarifárias a oito dígitos por país. E são 34 países envolvidos na negociação da Alca e 144 países envolvidos na OMC! E, ainda, tudo o que foi mencionado até aqui tem basicamente que ver com aparte de acesso a mercados de bens.
Depois ainda vêm serviços,investimentos, propriedade intelectual, subsídios agrícolas, meio ambiente, políticas de concorrência e por aí afora. Isso é o que eu estou aqui chamando de "complexidade das negociações". Só para ilustrar essa complexidade, tomemos o exemplo das tarifas dos EUA e do Brasil (tabela abaixo). As tarifas americanas que estarão sendo oferecidas nas mesas de negociação da OMC e da Alca são, na média, cerca de três vezes inferiores às brasileiras. Só que os EUA têm uma grande quantidade de tarifas próximas da casa dos 3%, sua tarifa mediana, que convivem com um reduzidíssimo número de picos tarifários que puxam a média para 5,4%. De fato, os EUA apresentam pouco mais de 100 posições tarifárias entre 35% e 350%, num universo de 10.350 posições, que protegem de forma "cirúrgica" produtos como fumo, laticínios, açúcar, suco de laranja, álcool, chocolates, amendoim e calçados.
Observe-se que 35% é a maior tarifa aplicada pelo Brasil. Portanto, se na média a economia americana é bem mais aberta que a brasileira, por outro lado os EUA praticam picos tarifários pontuais que literalmente "isolam" do mercado um punhado de produtos sensíveis. Produtos que, infelizmente, têm importância estratégica para o Brasil e que poderão facilmente ser incluídos em "listas de exceção" pelos EUA, se prevalecer a regra dos 15%. Note-se que esse valor de até 15% dos produtos em lista de exceção nunca foi definido stricto sensu e é uma aberração inaceitável que adiciona muito "molho de tomate" ao prato de espaguete. Os dados acima mostram, com muita clareza, que, se o Brasil aceitar qualquer lista de exceção, mesmo que muito pequena - 2% dos produtos, por exemplo -, poderá acumular grande perda líquida ante parceiros que combinam média tarifária baixa e picos altos.
Tabela 1. As Tarifas de Importação do Brasil e dos EUA (2000) | ||
. | Brasil | EUA |
No de Posições | 9.371 | 10.350 |
Tarifa Média | 14,1% | 5,4% |
Tarifa Mediana | 17,0% | 3,0% |
Tarifa Máxima | 35,0% | 350% |
Notas: Tarifas aplicadas NMF (Nação Mais Favorecida),incluindo a conversão das tarifas específicas e mistas dos EUA em equivalentes ad valorem. A mediana representa o ponto central de uma série de valores dispostos em ordem de magnitude. A tarifa mínima é zero nos 2 países.Fonte: Base de Dados da ALCA.
O USTR recentemente divulgou mais um relatório anual sobre barreiras ao comércio, que distribui acusações sobre o protecionismo de vários países, dentre eles o Brasil. Trata-se do mesmo velho filme de sempre, cujo principal objetivo é criar mais um factóide na formação de opinião pública doméstica em véspera de grandes negociações. O Brasil não deveria dar importância a isso, até porque faz o mesmo com razoável freqüência. A verdadeira diferença entre os dois países é que os EUA dispõem de dezenas de técnicos para desenvolver bases de dados, modelagens e simulações quedarão suporte à sua posição na hora da negociação.
A União Européia, a Austrália, a Nova Zelândia, o Canadá e outros países também dispõem dessa estrutura, mas o Brasil, não. Entendo que o País precisa iniciar imediatamente um esforço concentrado nesse sentido, e tratar o assunto coma mais alta prioridade "a oito dígitos", só para fazer uma analogia. Esse esforço precisa começar já no atual governo, independentemente das eleições, avançando por pelo menos três anos com equipes fixas e comprometidas em tempo integral, formadas por gente do governo, do setor privado e da academia. As negociações da Alca estarão começando no mês que vem e isso é muito sério - e ainda não vi nenhum sinal de mobilização no sentido apontado. Trata-se da única saída para depois não ficarmos todos chorando o leite derramado.
(*) Marcos Sawaya Jank é professor da Universidade de São Paulo e consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento