Quem vai pagar a conta?

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Marcos Sawaya Jank* - "O Estado de São Paulo" -17/09/2002

Véspera de eleição costuma ser um período marcado pela retomada de discursos paternalistas e cheios de promessas de todos os candidatos. Palavras como substituição de importações, subsídios a "setores estratégicos", tarifas seletivas de importação, preços mínimos e isenção temporária de impostos entram com força no discurso dos políticos. E os lobistas de plantão já se armam para retomar o balcão das lamentações e demandas, muito pródigo em passado não tão distante.

Na mídia proliferam opiniões e mesmo estudos que invertem conceitos extremamente básicos de economia, tais como a idéia de que "qualquer redução nas tarifas de importação traria per-das inaceitáveis para o Brasil". Há décadas os manuais básicos de economia ensinam que tari-fas de importação representam custos para os consumidores que costumam ser maiores do que os ganhos obtidos pelos setores protegidos e pela arrecadação do governo. Portanto, uma tarifa representa um custo com que a sociedade como um todo arca para favorecer os lucros e salários do setor protegido e os cofres do governo (principalmente nas pequenas economias).

Traduzindo: tarifas altas sobre computadores, por exemplo, significam que os mais pobres vão ter mais dificuldade para entrar na era da informática e da Internet. Em certos casos, tal privi-légio pode até levar à geração de tecnologia e produtos competitivos de qualidade. Em outros, a proteção gera apenas montadoras de produtos em "zonas francas de processamento de im-portações". Nesse caso, é a sociedade toda pagando caro por um produto "made in Brazil" no qual apenas se junta um monte de componentes importados a tarifas baixas. Há também casos em que a reserva de mercado é "patrioticamente" defendida para proteger os lucros de um punhado de empresas multinacionais instaladas no País, aí incluídas as suas escalas ineficientes e ociosidades forçadas. Investimentos estrangeiros que, verdade seja dita, serão sempre bem-vindos, mas que foram atraídos pela combinação de tarifas elevadas e incentivos fiscais, em detrimento do bolso dos consumidores e dos contribuintes.

Portanto, quem diz que "tarifas pontuais elevadas" ou "incentivos especiais" são instrumentos que beneficiam a sociedade está cometendo um atentado contra os princípios mais básicos da ciência econômica, e mesmo contra o senso comum. Na verdade, a teoria econômica mostra que é o livre comércio, sim, que traz benefícios líquidos para a sociedade, ainda que possa pre-judicar setores menos competitivos.

O leitor mais cético diante da globalização certamente vai pensar: "Olha aí mais um 'ingênuo' que acha que importações podem ser benéficas, que a abertura da economia é desejável e de-ve ser feita de forma unilateral pelos países, enfim, olha aí mais uma vítima do tal 'consenso de Washington'." De fato, nos últimos dois séculos diversos autores importantes apresentaram diferentes argumentos a favor da proteção, dentre eles o alemão Friedrich List, no início do século 19; o romeno Mihail Manoilescu, nos anos 1930; o argentino Raúl Prebisch e o brasileiro Celso Furtado, a partir dos anos 1950; e mesmo o americano Paul Krugman, mais recentemen-te.

Os principais argumentos mencionados são: substituição de importações, proteção à indústria nascente, criação de empregos, segurança nacional, equilíbrio da balança de pagamentos, polí-tica comercial estratégica e alguns outros. Nenhum deles é realmente convincente, já que em todos eles sempre predomina a mesma história: benefícios concentrados que não compensam as perdas difusas na sociedade. Sem contar o fato de que, uma vez garantida a proteção, reti-rá-la posteriormente é muito difícil, se não impossível, como bem alertou o famoso economista inglês John Stuart Mill no século passado.

Há um único argumento que, por dever de ofício, tendo a respeitar: a idéia do "second best", que justifica a própria existência da área denominada "política comercial". Esse conceito reza que o mundo ideal (first best) seria aquele onde todos os países eliminassem completamente as suas barreiras ao comércio, deixando as vantagens comparativas se manifestarem livremen-te. Só que, infelizmente, esse mundo ideal não existe. Os países costumam ser "liberais" nos setores em que são mais eficientes e "protecionistas" nos setores em que são menos eficientes, e ainda "mais protecionistas" nos setores em que há lobbies políticos atuantes. Japão e Coréia são reconhecidamente eficientes e liberais no comércio de produtos eletrônicos.

A Suíça é conhecida pelos seus bancos, relógios e canivetes. Na agricultura, os três países são um escândalo protecionista que custa caríssimo para nações eficientes na produção de alimen-tos, como o Brasil, ao bloquearem qualquer tentativa de liberalização do setor. Portanto, na vigência do "second best", a premissa deve ser que a abertura comercial, a liberalização dos mercados e as importações são necessárias e desejáveis para a sociedade. O atual nível de proteção do Brasil, porém, obriga a que qualquer nova etapa de abertura deva ser negociada de forma recíproca, e não unilateral, como ocorreu no passado. Ou seja, o Brasil vai reduzir as suas tarifas nos setores A, B e C em troca de acesso aos setores C, D e E no(s) país(es) com que está negociando.

Assim, acredito que o próximo governo deve negociar em todas as frentes sem nenhum pre-conceito apriorístico, com a intenção deliberada de completar a abertura da economia brasileira ao comércio de bens e serviços e aos investimentos estrangeiros, em troca de compensações equivalentes por parte dos nossos parceiros comerciais. A oportunidade única que o Brasil vai viver nos próximos dois anos nas negociações da Alca, do acordo União Européia-Mercosul e da Organização Mundial do Comércio (OMC) deve, assim, ter como meta a busca do interesse na-cional, e raramente interesses setoriais, traduzido em termos de aumento do comércio e dos empregos, ganhos de produtividade, atração de investimentos externos, aumento e melhoria da distribuição de renda. Para isso são necessários prazos de adaptação, correção dos funda-mentos da economia (carga de impostos, taxa de juros), aumento das importações, análise detalhada das melhores barganhas, etc.

Nos Estados Unidos costuma-se repetir uma famosa expressão que diz: "There is no free lunch" - isto é, não existe almoço de graça. Ou seja, se você não pagou, alguém vai pagar pelo seu almoço. No caso do Brasil, a sociedade já pagou inúmeras vezes pelas fartas "refeições" de minorias privilegiadas. Reforma tributária, disciplina fiscal, redução da taxa de juros, melhoria da infra-estrutura, uniformização das políticas de comércio exterior e maior coordenação da sociedade nas negociações internacionais são objetivos óbvios e prioritários de qualquer gover-no que venha a assumir o País.

Agora, clientelismo, elevação das tarifas de importação, subsídios dirigidos a "setores estraté-gicos", manutenção de monopólios, fixação de preços, isenção seletiva de impostos e recusa a priori de negociar com o país A ou B são propostas que, infelizmente, costumam voltar à tona no discurso pré-eleitoral dos eternos "salvadores da Pátria", mas que já deveriam ter sido en-terradas pela nossa experiência passada. O bolso do cidadão comum agradece se a conta do almoço não acabar sobrando para ele!

Marcos Sawaya Jank é professor associado da Universidade de São Paulo e Con-sultor do BID. O autor expressa seus pontos de vista em caráter pessoal Email: Este endereço para e-mail está protegido contra spambots. Você precisa habilitar o JavaScript para visualizá-lo.

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