Gilmar Mendes
Lourenço *
É praticamente
generalizado o diagnóstico de que o agronegócio brasileiro
está atravessando um momento de forte compressão de rentabilidade
financeira, a despeito da residual performance positiva de atividades
como cultivo da cana-de-açúcar e laranja, favorecidas por
aspectos específicos, como a substancial elevação
do consumo de álcool, vinculada ao aumento da demanda por veículos
flex, a elevação das cotações do petróleo
e a quebra da safra americana de cítricos.
A regra geral delineia contornos de crise de liquidez na agropecuária,
com influências negativas em distintas cadeias produtivas, o que
deve provocar a interrupção, por um período relativamente
prolongado, dos movimentos de expansão das fronteiras físicas
de produção e de novos investimentos em ampliação
da capacidade produtiva e/ou melhoria de eficiência e competitividade
setorial.
Os fatores explicativos do colapso dos negócios direta e indiretamente
articulados à área rural — que resultou em perdas
de R$ 21,0 bilhões em 2005, estimadas pelo próprio Ministério
da Agricultura e corroboradas pela Confederação Nacional
da Agricultura (CNA) — possuem raízes climáticas,
conjunturais e estruturais.
Pelo vértice climático emergiram duas secas consecutivas
(2004 e 2005), ocorridos no Centro-Sul do País, afetando drasticamente
a quantidade colhida e a produtividade das lavouras de grãos dos
principais estados produtores (Paraná e Rio Grande do Sul) e provocando
prejuízos a montante (máquinas, implementos e insumos) e
a jusante (processamento industrial) dos encadeamentos produtivos.
Pelo ângulo conjuntural apareceram os efeitos da dobradinha formada
por juros altos e câmbio baixo, embutida na estratégia macroeconômica
do governo federal, em meio a um cenário de recuo dos preços
mundiais das commodities agrícolas — sobretudo de soja, ocasionado
pela ampliação da safra norte-americana, deprimindo as margens
operacionais das atividades exportadoras, por meio da elevação
dos custos financeiros e da redução da receita em reais
com a conversão dos dólares oriundos das vendas externas.
Contudo, os reflexos das intempéries climáticas e da orientação
econômica serviram apenas para desnudar o vetor de constrangimentos
estruturais, ou os elementos constitutivos da ausência de uma visão
oficial de longo prazo para o agronegócio, retratada na clara sinalização
de rápida continuidade do afastamento do Estado de um setor extremamente
volátil, dominado por ciclos de produção e de transações
extremamente curtos.
Os reflexos das intempéries climáticas e da orientação
econômica serviram apenas para desnudar o vetor de constrangimentos
estruturais do agronegócio brasileiro. Mais precisamente, é
impossível enxergar empenho das autoridades na derrubada das barreiras
orçamentárias erguidas para o cumprimento da política
de preços mínimos e a disponibilização dos
recursos financeiros preferenciais, inclusive o seguro agrícola.
O cenário de deterioração do poder de autofinanciamento
dos produtores e de captação de recursos subsidiados do
crédito rural pode ser comprovado pelo declínio dos valores
liberados para custeio e investimento agrícola de 30,0% e 40,0%,
respectivamente, em 2005, quando confrontados com os desembolsos realizados
em 2004, atribuído principalmente à alocação
de cifras para a cobertura de atrasos de dívidas contratadas nos
anos anteriores pelos produtores.
Cabe sublinhar, também, a impulsão das despesas logísticas,
diante do acréscimo nos preços internacionais do petróleo
e do sucateamento da infra-estrutura de transportes, e o descaso com o
dumping internacional praticado principalmente por Estados Unidos e União
Européia. Ainda nesse conjunto de restrições, sobressaem
outras deficiências na retaguarda setorial, especialmente em defesa
sanitária, não regulamentação da lei de biossegurança
e dos produtos geneticamente modificados.
O aparecimento dos casos de febre aftosa nos estados de Mato Grosso do
Sul e Paraná reproduz exemplos patéticos e práticos
da situação de abandono do segmento rural brasileiro na
arena dos famintos mercados competitivos, sem a ativação
de mecanismos públicos de proteção (como ocorre rotineiramente
nas nações avançadas).
O abalo na imagem do País no ambiente internacional, provocado
pelas distorções fitossanitárias, contaminou a demanda
de carne bovina e atingiu os mercados de suínos e aves, que exibiam
uma conjuntura de preços favoráveis e de diminuição
de despesas, vinculadas à redução do custo das rações.
Mais de 50 países fixaram embargos às carnes brasileiras
desde o surgimento dos focos.
Por tudo isso, segundo estimativas do mercado, o agronegócio brasileiro
amargou queda de receita superior a 10,0% no exercício de 2005,
o que implicou redução das decisões de plantio e
de emprego de tecnologia nas lavouras para~o ano agrícola de 2005/
2006, principalmente de fertilizantes, agudizando os desdobramentos dos
problemas climáticos. As previsões correntes dão
conta de diminuição de 5,0% na área cultivada, 20,0%
na comercialização de fertilizantes e defensivos e de 40,0%
na venda de máquinas e equipamentos. Só a título
de exemplo, a comercialização de aviões agrícolas
da empresa Neiva, subsidiária da Embraer, caiu 52,0% em 2005.
No Paraná, estado responsável por um quarto da produção
nacional de grãos, a estiagem provocou diminuição
de 17,4% na safra, devendo atingir 18,05 milhões de toneladas,
contra previsão de 21,85 milhões, e ocasionar prejuízos
de no mínimo R$ 1,4 bilhão, que podem inclusive superar
os R$ 4,5 bilhões contabilizados no ano passado. A esse respeito,
convém observar que o faturamento e os investimentos das cooperativas,
elo detentor de maior capacidade financeira na cadeia do agronegócio
regional, acusaram queda de 8,3% e 23,0% em 2005, respectivamente.
Tal cenário justifica, de forma plena, os pleitos manifestados
pelos produtores rurais junto ao governo federal, no sentido da adoção
de providências emergenciais como a dilação do prazo
de pagamento dos financiamentos de custeio por cinco anos, com dois de
carência, a disponibilização de recursos para cooperativas
e fornecedores de bens de produção que realizaram empréstimos
a produtores rurais, a abertura dos novas linhas de crédito e a
revitalização do instrumento conhecido como política
de preços mínimos.
Essencialmente, a crise do agronegócio reproduz a disposição
do governo de construir uma espécie de segundo estágio da
âncora verde da estabilização macroeconômica,
sendo que o primeiro teve duração prolongada, começando
em 1994 e terminando em janeiro de 1999, com a desvalorização
do real e a instituição do câmbio flutuante.
Desde então, apesar do arsenal de defesas montado pelos produtores
agrícolas e agroindustriais brasileiros, reforçado pela
depreciação cambial ocorrida em 2002 — o que resultou,
por exemplo, na dominação dos mercados mundiais de carnes
—, a falta de um arcabouço institucional de longo termo,
capitaneado pelo poder público, vem tornando o agronegócio
do País presa fácil das armadilhas do clima e dos mercados.
Parece tão simples, mas os produtores precisam apenas de estabilidade,
transparência e garantia do cumprimento das regras do jogo por parte
do Estado. Da porteira ou da porta da fábrica para dentro, tudo
se resolve. Mas, com a cotação do dólar abaixo de
2,70 reais, o Brasil está abdicando da possibilidade de consolidação
da condição de maior exportador mundial de alimentos, por
conta não apenas da insuficiente geração de renda
para a utilização final em investimentos, como também
da não cobertura dos dispêndios operacionais com máquinas,
insumos e mão-de-obra.
*Economista coordenador do Núcleo de Análise de Conjuntura
do Ipardes. Artigo publicado na revista Analise Conjuntural, v 28, n.
1-2, p. 14, jan./fev. 2006
|