O boom do agronegócio: é preciso não deitar nos louros

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Em um país que durante boa parte do século passado buscou a industrialização para livrar-se do fantasma da dependência de produtos primários, não deixa de ser irônico que o grande milagre brasileiro das últimas décadas seja a explosão do agronegócio. Os números são impressionantes. O Brasil saiu de 57,1 milhões de toneladas de grãos na safra de 1990/91 para 119,4 milhões na de 2003/04. O sucesso do agronegócio brasileiro, hoje responsável pelo saldo comercial de mais de US$ 30 bilhões, é uma lição sobre a validade da teoria das vantagens comparativas: o Brasil, com sua combinação inigualável de território, água e insolação em abundância, é um dos países mais bem equipados do mundo para competir no setor agropecuário e no de indústria alimentícia.Nos últimos dez anos, houve saltos significativos na produtividade dos principais cultivos no Brasil, medida em quilogramas por hectare.

Comparando a safra de 1994/95 com a de 2003/04, aqueles ganhos variaram entre 26,8%, no caso da soja, até 145%, no do algodão. Junto com o aumento da área cultivada, o crescimento da produtividade permitiu ao país atingir o posto de maior produtor do mundo de café, laranja e cana-de-açúcar; segundo maior de soja, carne de frango e carne bovina; e terceiro em frutas e milho. Na origem do boom agrícola brasileiro, encontra-se um formidável esforço de pesquisa e desenvolvimento, que contribuiu para transformar o potencial representado pelas vantagens comparativas em ganhos concretos para o país. A face mais visível daquele avanço é a Embrapa, a estatal brasileira de desenvolvimento agrícola, responsável por alguns dos principais marcos da história recente do agronegócio no Brasil.

É o caso, por exemplo, do desenvolvimento da soja do cerrado a partir da década de 70, que se desdobrou na soja tropical, permitindo a expansão do cultivo da oleaginosa no Brasil. Antes deste processo, as variedades disponíveis, soja americana e do Rio Grande do Sul, só davam bons rendimentos em latitudes altas, distantes da linha do Equador. Do Paraná para o Norte do país, os resultados não eram satisfatórios. No entanto, hoje a produção na região do cerrado chega a atingir 57 sacos de 60 quilos por hectare de área plantada, comparado com 40 sacos no Rio Grande do Sul.Outro fator decisivo para o avanço da produção agrícola brasileira foi o aumento do preço em reais recebido pelos empresários do agronegócio. Do lado externo, houve o aumento da demanda global por nossas commodities, especialmente aquele proveniente do espetacular crescimento econômico da China, elevando, dessa forma, os preços internacionais de commodities agrícolas.

Do lado interno, a flexibilização da taxa de câmbio, em 1999, gerou uma desvalorização do real.História de sucesso por excelência da economia brasileira nos últimos anos, o agronegócio vem sendo louvado e aclamado, com todos os méritos, em artigos de imprensa e programas de televisão, e transformou-se em um dos aspectos do desenvolvimento nacional que o governo mais gosta de realçar. O justo orgulho que os brasileiros hoje nutrem em relação ao setor agropecuário não deve, entretanto, transformar-se naquele tipo de ufanismo pelo qual o país acredita-se predestinado ao sucesso competitivo, independentemente de como é construído o ambiente institucional no qual vicejam as vantagens comparativas. Na verdade, são muitos os desafios para garantir que o futuro do agronegócio brasileiro seja tão brilhante quanto o do passado recente, e em algumas áreas os sinais atuais são um pouco preocupantes.

Como já comentado, os avanços da pesquisa agronômica no Brasil foram fundamentais para o deslanche do setor nas últimas décadas. Hoje, porém, a atitude ambígua do governo em relação aos transgênicos pode estar refreando progressos com potencial tão promissor quanto os da soja do cerrado e da soja tropical no passado. O algodão transgênico BT (Bacilus Turgiensis), por exemplo, proibido no Brasil, hoje é plantado até na Austrália, uma nação tão ou mais conservadora do que o Brasil em termos de proteção ambiental e humana. Do ponto de vista bioquímico, o algodão transgênico BT possui uma proteína que dificulta o trato intestinal da lagarta do algodoeiro.

Com isto, a lagarta não assimila as folhas ao comê-las e acaba morrendo. Por conseguinte, com o BT, as 14 aplicações de agro-tóxico no plantio de algodão no Brasil, que representam 40% dos custos de produção, poderiam ser reduzidas para seis.Na própria Embrapa, houve sinais desalentadores em fevereiro de 2003, início do mandato da atual direção. Em memorando oficial, definiu-se que a vertente prioritária da empresa seriam as atividades de pesquisa e desenvolvimento direcionadas à agricultura familiar, assentamentos de reforma agrária e pequenos empreendedores rurais. No mesmo documento, o agronegócio exportador era classificado como segunda vertente prioritária. Se é evidente, por um lado, que a Embrapa deva dar atenção a todos os segmentos, a hierarquização de prioridades mencionada acima diminui os incentivos à grande agricultura capitalista, através da qual os avanços da pesquisa encontram o leito mais fértil para alcançar o seu máximo rendimento econômico.

O risco é o de que a ambigüidade do poder público em relação ao agronegócio capitalista, refletida também na forma de tratar a questão dos transgênicos, impeça o contínuo bom funcionamento e aperfeiçoamento da moldura institucional que permitiu o grande salto das últimas décadas.Outro aspecto institucional do qual o Brasil não pode descuidar é o da qualidade sanitária. Ao contrário do que se costuma pensar, ela não depende apenas da defesa fitossanitária e da fiscalização, mas exige uma rede de laboratórios, principalmente de biotecnologia, para lastrear empresas certificadoras, controles nos portos, inspeção de produtos vegetais e animais, etc. No caso da suspeita levantada pelo Canadá quanto à ocorrência da doença da vaca louca no rebanho brasileiro, o Ministério da Agricultura acionou a Embrapa, encarregando-a de colher centenas de amostras em muitos frigoríficos para análise em laboratório, permitindo que o Brasil provasse muito rapidamente a inexistência do problema no território nacional.Esta vitória, porém, não deve ser razão para o país dormir sobre os louros.

É necessário ampliar e modernizar os laboratórios brasileiros, em todas as regiões do país, tendo em vista o ambiente internacional no qual uma acusação nem sempre bem fundamentada de um país importador pode arrasar globalmente as vendas externas de um determinado produto, destruindo em questão de dias o trabalho de anos de abrir e conquistar mercados. A questão da qualidade sanitária, aliás, vem espocando em diversos episódios recentes, como o do embargo chinês à soja brasileira, em função da suposta detecção de agrotóxicos condenados, ou os embargos da Rússia à carne suína.

Os poucos focos ainda existentes de febre aftosa no rebanho bovino brasileiro, em áreas remotas e cuja produção não se destina à exportação, representam mesmo assim um sério risco econômico aos produtores de carne.Para manter a competitividade e a expansão do agronegócio no Brasil, também é preciso cuidar da infra-estrutura logística de escoamento da produção. A situação calamitosa das estradas do país, especialmente da malha rodoviária, significa um custo adicional para os nossos exportadores de commodities, fazendo com que a competitividade da produção nacional seja menos espetacular do que poderia ser.Na última safra de soja, chegou-se à situação absurda pela qual cada bushel de soja embarcado no porto de Paranaguá chegasse a sofrer uma redução de preço de Us$ 2 — o que representava 26% da cotação de mercado que era de Us$ 7,80 —, resultado do prêmio negativo pago devido à demora no embarque da soja em razão da fila de quase 100 quilômetros de carretas carregadas. Não se pode negar que o problema em Paranaguá foi agravado pela ação do governo estadual contra a soja transgênica (evidenciando o risco jurídico que perpassa todas as áreas do ambiente de negócios no Brasil), porém não existem dúvidas de que a precariedade da malha viária também contribuiu. Neste sentido, a recente aprovação da lei das Parcerias Público-Privadas (PPP) pode ser um passo correto para retomada dos investimentos em infra-estrutura viária e portuária no país.

Do ponto de vista da demanda externa, o principal desafio do agronegócio brasileiro são as negociações comerciais simultâneas no âmbito da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), do acordo entre o Mercosul e a União Européia (UE) e da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Como é bem sabido, o setor agropecuário é o que, de longe, mais sofre com o protecionismo, enfrentando uma teia de cotas, subsídios e barreiras não-tarifárias, que se intensificam à medida que a competitividade do agronegócio brasileiro vai se impondo na arena internacional.Esta Carta procurou levantar, de forma resumida, um roteiro de desafios para nortear o avanço do agronegócio brasileiro, perenizando o diferencial competitivo proveniente das inegáveis vantagens comparativas do país neste setor, dando seqüência às análises feitas na edição de dezembro último de Conjuntura Econômica, onde o agronegócio foi o tema central daquela edição. Ao contrário do que muitas vezes se diz, explorar corretamente as vantagens comparativas não significa condenar o Brasil a um perfil de produção primária e pouco sofisticada.

Na verdade, o espetacular avanço do agronegócio nacional foi calcado no desenvolvimento de novas tecnologias de produção e de grandes investimentos em capital fixo.Produtores modernos são capazes de lidar tanto com a sofisticação financeira dos mercados futuros quanto com a complexidade da pesquisa em biotecnologia. Estes diferenciais estão embutidos na produtividade do setor, e explicam a rentabilidade e o sucesso capitalista da agropecuária e da indústria alimentícia do Brasil. A missão do poder público nesta história bem-sucedida é a de estar à altura da sofisticação do setor, profissionalizando e aperfeiçoando seus quadros e instituições de negociações comerciais, qualidade sanitária e pesquisa agronômica. E também é preciso evitar que a politização espúria de questões técnicas ou econômicas bloqueie os avanços da pesquisa e a abertura de novos mercados para a produção brasileira.

(*) Artigo publicado na Revista Conjuntura Econômica – Edição Janeiro de 2005

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